Medo, Morte, Tortura e Pragas Escafismo – Parte 1

Pode-se pensar que o controle de pragas está intimamente associado à vontade humana de manter tudo que é indesejado bem afastado.

Mas, o que a humanidade considera como sendo “indesejado”?

A resposta a essa questão passa por medos instintivos ou quase que grudados à natureza humana ou à nossa natureza animal.

Sem muitos problemas podemos elencar três coisas que consideramos indesejáveis: a morte violenta, a sujeira e situações de horror. Tomando como eixo a morte violenta, a criatividade humana consegue associar a morte com cadáveres ou corpos em putrefação, o que remete quase que imediatamente a algo sujo e nojento.

Essa primeira associação – morte e cadáveres – parece não ser muito problemática. Todavia, a capacidade imagética do homem atual também consegue associar morte com vermes e com algumas pragas. Parte dessa associação está fortemente relacionada ao flagelo das guerras. Nos campos de batalha, finalizado o combate, não é incomum que corpos sem vida fiquem jogados no solo. Comumente, esses corpos atraem ratos e outros animais que procuram se alimentar. Dessa interação macabra surgem vermes, fedor e, parodiando o personagem Kurtz, “O horror, o horror”. 1

Assim, esta postagem procura mostrar como a associação entre morte, fealdade e vermes é antiga e participou da formação cultural do mundo ocidental consistentemente.

Para exemplificar o que quero passar, escolhi começar pelo tema do ESCAFISMO.

ESCAFISMO


A palavra “escafismo” tem origem no termo grego “σκάφη”, que remete à ideia de barcos – por isso é conhecido por “Os barcos” ou “O suplício dos barcos / botes ”, ou simplesmente a “Tortura dos barcos” -, mas pode remeter à ideia de algo escavado ou perfurado.

O escafismo é um dos piores métodos de tortura criados pela mente humana. Ele foi criado pelos
antigos persas não se sabe ao certo quando exatamente. Todavia, o historiador grego Plutarco (c. 46 d.C – 120 d.C) na obra Vidas Paralelas, mais especificamente no livro sobre a biografia de Artaxerxes II, nos relatou a morte do infeliz Mitríades, sentenciado ao suplício dos botes. Assim, pode-se supor razoavelmente que o escafismo era um método de tortura praticado, pelo menos, desde o século V a.C.

Para começar a entender o funcionamento dessa terrível tortura, parece interessante utilizar as palavras do seu primeiro narrador: o próprio Plutarco.


Esta tortura dos barcos é como segue: dois barcos são escolhidos de modo a que cada um deles possam se encaixar um sobre o outro perfeitamente. Em um deles a vítima é posta deitada com as costas para baixo. Depois, o outro barco é colocado sobre o primeiro e cuidadosamente ajustado, de modo que a cabeça da vítima, mãos e pés são deixados de fora, enquanto o resto do seu corpo está completamente coberto. Então, a vítima recebe comida para comer, e se ela se recusar, eles [os torturadores] espetam os olhos da vítima, obrigando-a a se alimentar. Depois dela ter comido, dão-lhe uma mistura de leite e mel para beber, derramando-o em sua boca, e também inundando o seu rosto. Eles mantêm os olhos da vítima sempre voltados para o sol e 
um enxame de moscas pousa sobre o rosto e o esconde completamente.

Uma vez que dentro dos barcos é feito o que deve ser feito quando os homens comem e bebem, vermes e vermes se levantam da decomposição e podridão dos excrementos devorando o corpo, alimentando-se dos órgãos vitais. Pois quando, finalmente, o homem está claramente morto e o barco de cima for removido, percebe-se a carne consumida, enquanto que sobre suas entranhas enxames de animais, como os que eu mencionei, estão se agarrando rapidamente e as comendo. Mitrídates foi lentamente consumido por dezessete dias e finalmente morreu. 2

A morte pela tortura do escafismo é brutal, cruel e humilhante. Humanamente falando é chocante pensar que a criatividade humana é capaz de produzir belas sonatas, mas também parece ser capaz de alcançar para além do que pessoas comuns chamariam de maldade.

O leitor atento deve ter percebido o papel fundamental de insetos e vermes na execução dessa terrível tortura. Pode-se argumentar que os torturadores humanos – que têm basicamente o trabalho de prender a vítima, mantê-la alimentada e viva por um bom tempo – são coadjuvantes dos enxames de pragas que carcomerão o “escafiado” pelas partes sensíveis como olhos, ouvidos, narinas, boca, ânus e pelas feridas e gangrenas quando elas aparecerem. Também, os vermes lentamente consumirão a pobre vítima por dentro.


A diarreia causada pelo excessivo consumo de mel ocasionará duas consequências: diarreias violentas e o inchaço da região abdominal, tudo isso acompanhado de dores que certamente eram intensificadas pela posição desagradável em que a vítima era acomodada no interior dos dois barcos.

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Na próxima postagem, a relação entre morte e pragas será melhor aprofundada. Para tanto, continuaremos analisando a simbologia metódica do escafismo com mais um relato importante de Zonaras.

1 Ver a clássica obra de Joseph Conrad, “O coração das trevas”.

2 A tradução do trecho, em língua inglesa, é minha. A tradução foi feita a partir da obra “The Parallel Lives”, escrita por Plutarco. Essa obra foi publicada no volume XI da Loeb Classical Library edition, no ano de 1926. Essa obra é de domínio público.

Os colchetes e a marcação em vermelho são meus.

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